Blog do Carpinejar

CASINHA DE SALVA-VIDAS

Guarita que serve de brincadeira para crianças de dia se transforma em abrigo de namorados à noite.


Nossa residência em Rainha do Mar tinha dois quartos e 10 colchões. Bastava apertar um pouco e surgia lugar para mais um. Vigorava uma generosidade que não conhecia em Porto Alegre.

Os parentes descobriam o endereço e apareciam de repente para descolar uma hospedagem de graça. Nem avisavam, desciam a bagagem com a vibração das cornetas dos sorveteiros. O sofá servia de beliche, não me pergunte como. Um primo acabou dormindo no chão da cozinha. Não se podia pegar água, senão o acordava. Não conferi o telhado, não duvido de tios roncando nas calhas.

Familiares ocupavam as mínimas frinchas. O último a voltar do mar sofreria para puxar uma sesta. Tomar banho, nem se fala, uma fila se formava no corredor, com o pessoal segurando suas roupas.

Apesar da multidão espremida na mesa, dos imprevistos financeiros e da falta de conforto, minha família nunca brigava no mar. O cheiro do mar agia como um chá de camomila. As discussões sobre os problemas de casamento desapareciam na areia branca.

O litoral representava um alegre esquecimento. Dois meses de paz em que não enxergaria a porta trancada do quarto com minha mãe chorando ou meu pai na varanda olhando melancólico para as formigas nos contornos dos azulejos.

Eles selavam um pacto de felicidade. O único momento em que tiravam fotografias. Em todas as minhas imagens da infância, estou com calção de banho. Penso que não existe jeito de ser triste com o barulho do oceano.

Na praia, eu fiz mais amizades do que na escola. As residências sem cercas, a bola que atravessava as fronteiras dos guarda-sóis, o amontoado gostoso da padaria, tudo ajudava para puxar conversa. Amizade acontecia com o esbarrão, não precisávamos saber quem o outro era e de onde vinha. Com um riso, logo estávamos marcando um jogo de futebol ou dividindo um picolé de fruta.

Na capital, havia o cuidado com os estranhos. No litoral, havia o cuidado para não ser estranho.

Cresci aguardando as férias para crescer. Aprendi a andar de bicicleta nas ruas inclinadas de pé-de-moleque. Aprendi a ficar de pé na prancha e ainda acenar para a turma. Aprendi a cortar grama com a camisa amarrada na cabeça como um hindu. Aprendi a dirigir na solidão dos descampados. Aprendi a esperar a chuva amainar jogando cartas e varetas. Aprendi a despertar com o sol inundando o quarto.

Mas aprendi a amar, principalmente.

Eu me apaixonei no momento errado. Conheci Laura justamente no seu último dia de veraneio. A gente se encontrou descendo nas dunas em caixas de papelão. Apostamos corrida, em seguida entramos no mar. Sua boca: um biquíni vermelho cobrindo a brancura maravilhosa dos dentes. Encostei sua mão em meu ouvido. Gemido bom de concha. Brinquei de telefone com os dedos dela. De tanto que me estendi, devo ter ligado para a África.

Na volta, mostrei minha casa. Ela me mandou um bilhete de tarde com desenhos de Minnie. Foi a primeira carta de amor que recebi.

“Fabrício olhos de jabuticaba
Vamos casar? Na guarita. 18h.
beijo
Laura”


Os casais namoravam escondidos na guarita. A escada acentuava a aventura.

Expirava o horário dos brigadianos e os apaixonados se protegiam do vento e assumiam os cuidados do horizonte. Muitas vezes, salvaram a lua em seus mergulhos noturnos.

Escondi o papel no bolso. Com 11 anos, aquilo foi assustador. Como contaria aos pais que iria casar? Preparei uma malinha levando minhas bolinhas de gude, meu time de botão, duas bermudas e três camisas. Achava que era suficiente para uma vida a dois.

Deitei na rede e não me mexi para o tempo passar. Quando não me mexo, é que o tempo demora.

O cansaço doeu e virou saudade. Lutei contra o sono, mas é impossível impedir o avanço do bocejo, sonhei que dava um beijo leve em sua boca de pano.

Minha mãe me acordou às 20h. Estava abraçado à mala.

– Ai, perdi o encontro!

Não vi a menina na manhã seguinte, nem depois.

Quando caminho pelas margens da praia ao entardecer, talvez por cisma, talvez por esperança, espio por dentro das casinhas de salva-vidas.




Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 55, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 11/02/20010

Fale comigo

Contrate
agora uma 
palestra

Preencha o formulário para receber um orçamento
personalizado para a sua empresa ou evento.

Termos de uso e politica de privacidade